Em meu sonho, vi caminhando em minha direção um Fantasma (homem). Sentado nele estava um pequeno lagarto vermelho (pecado), torcendo a cauda como se fosse um chicote e murmurando coisas em seu ouvido. Quando o avistei, ele virou a cabeça para olhar o réptil, dizendo impaciente: "Cale-te, já mandei!" O bicho balançou a cauda e continuou sussurrando. O Fantasma parou de censurá-lo e começou até a sorrir. Depois voltou-se e começou a coxear em direção oposta às montanhas (morada de Deus), para o oeste.
"Já vai embora tão cedo?" disse uma voz.
Quem falava tinha a forma geral humana, mas era maior do que um homem, e tão brilhante que eu mal podia olhar para ele. A sua presença atingiu-me os olhos e também no corpo (pois ele emanava tanto calor como luz) como o sol da manhã de um tórrido dia de verão.
"Sim, já vou", disse o Fantasma. "Obrigado pela hospitalidade. Mas, como vê, não adianta. Falei a este pequeno camarada (e aqui ele apontou o lagarto) que teria de ficar calado se viesse. Naturalmente sua conversa não seria aceita aqui. Mas ele não quer parar. Tenho que ir para casa."
"Você gostaria de fazê-lo calar?" perguntou o espírito flamejante - um anjo, como soube então.
"Claro que sim", disse o Fantasma.
"Vou então matá-lo, falou o anjo", avançando um passo.
"Oh - ah - cuidado! Você está me queimando. Fique longe", exclamou o Fantasma retrocedendo.
"Não quer que ele seja morto?"
"Você não disse nada sobre matá-lo no princípio. Eu não pensava em perturbá-lo com algo tão drástico assim."
"É o único modo", falou o anjo, cujas mãos em chamas estavam agora muito próximas do lagarto. "Devo matá-lo?"
"Bem, isso é outra questão. Estou pronto a considerá-la, mas isso é novidade, não é? Quero dizer, no momento eu só estava pensando em silenciá-lo porque aqui - bem, é muito embaraçoso."
"Posso matá-lo?"
"Bem, há tempo para discutir isso mais tarde."
"Não há tempo. Posso matá-lo?"
"Por favor, nunca pensei em causar tanto problema. Por favor, realmente, não se preocupe. Veja! Ele dormiu por si mesmo. Estou certo de que tudo estará bem agora. Obrigado."
"Posso matá-lo?"
"Honestamente, não acho que haja qualquer necessidade disso. Estou certo de que irei mantê-lo na linha daqui por diante. Penso que um processo gradual seria muito melhor do que exterminá-lo."
"O processo gradual de nada valeria."
"Acha isso? Bem, vou pensar cuidadosamente no que disse. Vou mesmo. De fato permitiria que o matasse agora, mas não estou me sentindo muito bem hoje. Seria tolice fazê-lo agora. Eu precisaria estar bem para a operação. Algum outro dia, talvez."
"Não há outro dia. Todos os dias estão presentes agora."
"Afaste-se! Você está me queimando. Como posso mandar que o mate? Você estaria me matando."
"Isso não aconteceria."
"Mas, está me machucando."
"Eu não disse que não iria machucá-lo, apenas que não o mataria."
"Ah, já sei. Pensa que sou covarde . Mas não é nada disso. Realmente não é. "Olhe, deixe que volte ao meu caminho e consulte meu médico. Voltarei logo que puder."
"Este momento contém todos os momentos."
"Por que me tortura? Está zombando de mim. Como posso permitir que me faça em pedaços? Se quisesse me ajudar, por que não matou o diabo da coisa sem me perguntar - antes que eu soubesse? Tudo estaria terminado, se tivesse feito isso."
"Não posso matá-lo contra a sua vontade. É impossível. Tenho a sua permissão?"
As mãos do anjo estavam quase fechadas sobre o lagarto, mas não de todo. Então o animal começou a conversar com o Fantasma tão alto que até eu podia ouvir o que dizia.
"Tenha cuidado", disse. "Ele pode fazer o que diz. Pode matar-me. Uma palavra fatal de seus lábios e fará isso. Então ficará sem mim para sempre. Não é natural. Como iria viver? Seria apenas uma espécie de fantasma, e não um homem verdadeiro como é agora. Ele não compreende. Pode ser natural para ele, mas não para nós. Eu sei, eu sei. Sei que não existem prazerem reais agora, somente sonhos. Mas, eles não são melhores do que nada? E vou ser tão bom. Admito que exagerei algumas vezes no passado, mas prometo não repetir. Só lhe darei sonhos bons - doces, refrescantes e quase inocentes. Você até poderia dizer, muito inocentes..."
"Tenho a sua permissão?" disse o anjo ao Fantasma.
"Sei que isso iria matar-me."
"Não iria, mas, e se fosse assim?"
"Você está certo. Seria melhor estar morto do que vier com esta criatura."
"Posso então?"
"Maldito seja você! Ande logo! Acabe com tudo. Faça o que quiser", berrou o Fantasma, mas no fim, acabou se lastimando: "Deus, me ajude. Deus, me ajude."
No momento seguinte o Fantasma deu um grito de agonia como eu jamais ouvira na terra. O Queimador fechou a mão carmesim sobre o réptil, enquanto ele mordia e se retorcia, e depois, atirou-o, com a espinha quebrada, sobre a grama.
"Oh, isso acabou comigo", ofegou o Fantasma, cambaleando para trás.
Durante alguns minutos nada pude ver distintamente. Mas, a seguir, entre mim e o arbusto mais próximo, indiscutivelmente sólido e tomando-se cada vez mais sólido, pude ver o antebraço e o ombro de um homem. Depois, mais brilhante ainda e mais fortes, as pernas e as mãos. O pescoço e a cabeça dourada se materializaram enquanto eu observava, e se minha atenção não se tivesse desviado, eu teria visto o acabamento completo de um homem - um ser imenso, nu, não muito menor do que o anjo. O que me distraiu foi o fato de que nesse mesmo momento algo pareceu estar acontecendo com o lagarto. A princípio, pensei que a operação tivesse falhado, pois longe de ter morrido, a criatura continuava se debatendo, e até mesmo crescendo enquanto se debatia. E conforme crescia ia-se transformando. Suas partes traseiras aumentaram. A cauda, ainda trêmula, tornou-se uma cauda peluda que se movia entre nádegas enormes e lustrosas. De repente dei um passo para trás, esfregando os olhos. O que estava à minha frente era o maior garanhão que já vira, branco como prata mas com a crina e a cauda dourada. Era macio e lustroso, deixando entrever as camadas de carne e músculos, rinchando e batendo as patas. A cada batida a terra tremia e as árvores vibravam.
O homem recém-nascido voltou-se e deu uma palmada no pescoço do cavalo também novo. Este esfregou o focinho no corpo brilhante. Cavalo e cavaleiro sopraram um nas narinas do outro. O homem afastou-se dele, lançou-se aos pés do Queimador, e abraçou-o. Quando se levantou pensei que sua face brilhava de lágrimas, mas pode ter sido apenas o amor líquido e o brilho que fluíam dele.
Numa pressa alegre o jovem pulou sobre o dorso do cavalo. Voltando-se na sela fez um gesto de despedida, depois esporeou o animal com os calcanhares. Partiram antes que eu soubesse bem o que tinha acontecido. Saí o mais depressa possível de entre os arbustos para segui-los com os olhos; mas eles já pareciam uma estrela cadente, distantes na planície verde, e logo chegaram ao sopé das montanhas. Depois, ainda como uma estrela, eu os vi subindo, escalando o que pareciam ter escarpas inescaláveis, e mais depressa a cada momento, até que próximo à borda indistinta do cenário, tão alto que tive de estivar o pescoço para vê-los, eles desapareceram, luminosos, na luz rosada daquela manhã eterna.
- Trecho tirado do Livro "O Grande Abismo", de C. S. Lewis.
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